A
descoberta do Brasil em 1500 por Pedro Álvares Cabral e o conhecimento de uma
nova gente pela carta de Pêro Vaz de Caminha encaminhada a D. Manuel I[1]
levou os artistas renascentistas a introduziram na sua pintura pequenos
apontamentos deste Novo Mundo, nomeadamente, os índios. A história da
representação do índio insere-se nos reinados de D. Manuel I e do seu filho, D.
João III, e pretendem mostrar não só o sentido antropológico deste, mas
apresentar um novo olhar humanista do Homem.
Todavia,
a representação do índio variou de pintor para pintor e à medida que se iam conhecendo
melhor estes indígenas. Enquanto o primeiro contacto com Vera Cruz e as suas
gentes foi transmitido aos europeus como o paraíso térreo e a encarnação de
Adão e Eva na terra, mais tarde, esta primeira impressão foi-se alterando,
diabolizando a imagem do índio brasileiro. As obras escolhidas para abordar a
iconografia do índio mostram exactamente esta distinção: o painel a Adoração dos Magos, atribuído a Vasco
Fernandes, actualmente no Museu Grão Vasco, e O Inferno, atribuído ao Mestre da Lourinhã, no Museu Nacional
de Arte Antiga.
Vasco Fernandes,
mais conhecido por Grão Vasco, foi um pintor português do século XVI. Recebeu a
sua primeira obra em 1506, que consistiu na execução de quinze tábuas do
retábulo da Sé de Viseu. Entre esta dezena e meia de tábuas estava,
provavelmente, a obra Adoração dos Magos,
tendo tido como ideólogo D. Diego Ortiz de Villegas (sucedeu ao bispo D.
Fernando Gonçalves de Miranda), o bispo que deu o sermão à armada de Cabral
antes da partida.
No
quadro Adoração dos Magos, o rei
negro Baltasar[2]
foi substituído por um índio tupinambá, algo inédito na pintura contemporânea
da época, sendo mesmo a primeira representação do índio brasileiro. Esta
inspiração deveu-se, muito provavelmente, à descrição minuciosa dos índios
brasileiros de Pêro Vaz de Caminha, pois, nesta representação o índio ainda era o
bom selvagem, tal como o escrivão português o descreveu. A nudez desenvergonhada
do índio, como Adão e Eva antes do pecado original, contribuiu bastante para a
construção da sua imagem sacralizada junto da civilização[3]. O
homem primitivo e inocente, que ainda não foi corrompido pelos pecados do mundo
ocidental. É o retorno à Igreja Primitiva, também esta pura aquando a sua
construção, e também agora corrompida pelos males.
Para
além dos habitantes celestiais que Caminha ofereceu na sua descrição, também
brindou o mundo com um paraíso utópico, onde a natureza é exótica e o clima
afável.
«Assim, Senhor,
que a inocência desta gente é tal, que a d’Adão não seria mais quant’a em
vergonha. Ora veja Vossa Alteza que em tal inocência vive, ensinando-lhes o que
para a sua salvação pertence, se converterão ou não»[4].
Se
acompanharmos de perto a imagem deste índio na obra de Vasco Fernandes
conseguimos percepcionar uma reprodução da descrição de Caminha: a «copazinha
pequena de penas vermelhas e pardas como as dos papagaios», as penas do índio e
a lança de longo cabo - características dos Tupinambá. Todavia, os trajes (a
camisa e os calções) têm influência europeia, possivelmente foram oferecidos
pelos portugueses[5]
e os cabelos são crespos, como os negros, e não «corredios» ou rapados como
Caminha refere.
«E daqui mandou
o capitão Nicolau Coelho e Bertolameu Diis que fossem em terra e levassem
aqueles dous homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e cada um dos quais
mandou dar uma camisa nova e uma carapuça vermelha e um rosairo de contas
brancas d’osso, que eles levavam nos braços, e um cascavel e uma companhia»[6].
Vasco Fernandes (c. 1475-1542), Adoração dos Magos, c. 1510 (?)
pintura a óleo, 131 x 81, Museu Grão Vasco, 2145
Para
além destes elementos, o índio surge ainda de sandálias, com vários colares e
pulseiras de ouro, uma corrente de pérolas apertada no pescoço e múltiplas penas
coloridas numa faixa na cintura e na borda da camisa. A fortalecer a vertente
exótica desta obra encontramos o índio brasileiro a segurar «uma taça feita de
noz de coco montada em prata».
Grão
Vasco voltou a figurar o índio brasileiro no Calvário, mas nesta obra surge como o Bom Ladrão, ou seja, o pintor prolongou
no seu espólio a ideia do bom selvagem. Aqui, o índio é um homem bom,
assim como era o Bom Ladrão no Evangelho. E tal como aconteceu com Adoração dos Magos, também o Calvário seguiu as descrições anatómicas
de Pêro Vaz de Caminha[10],
sendo este“pardo” e de “cabelos negros e escorridos”.
Vasco Fernandes, Calvário,
c. 1515
pintura a óleo, 242,3 X 239,3, Museu Grão Vasco, 2156
Novamente,
o índio é a grande novidade na obra de Vasco Fernandes, pois todas as outras
personagens são típicas da temática religiosa: Jesus na cruz, o Bom e o Mau
Ladrão, a Virgem Maria, Maria Madalena[11],
Maria, mãe de Tiago, e Maria Salomé, os soldados com lanças, o grupo de homens
que trazem as escadas para descer os corpos e a cidade de Jerusalém.
«Lucas
23:39 E um dos malfeitores que estavam pendurados blasfemava dele: dizendo: Se
tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e a nós.
Lucas
23:40 Respondendo, porém, o outro, repreendia-o, dizendo: Tu nem ainda temes a
Deus, estando na mesa condenação?
Lucas
23:41 E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos
mereciam; mas este nenhum mal fez.
Lucas
23:42 E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino.
Lucas
23:43 E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no
Paraíso.»[12]
(Lc 23:39ss)
Outra
representação bem conhecida na pintura portuguesa que retrata o índio
brasileiro é O Inferno, de mestre não
identificado, segundo defende Dalila Rodrigues, ou do Mestre da Lourinhã, para o
Prof. Dr. Vítor Serrão, que chega mesmo a comparar a cabeça do índio-demónio
com o mago de Hermógenes, no retábulo de Santiago.
Este
quadro datável de cerca de 1515 encontra-se actualmente no Museu Nacional de
Arte antiga, em Lisboa, mas pensa-se que deve ter pertencido a um dos muitos
conventos extintos em 1834, pois a Academia de Belas-Artes ficou com grande
parte do seu espólio e em 1884 foi transferido para o Museu Nacional de Arte
Antiga. Para Fernando Pamplona, este quadro jamais poderia figurar num convento
devido ao seu tema demoníaco, dando ao leitor uma nova direcção: o Tribunal da
Relação em Lisboa.
Esta
obra traz outras especulações como a sua real dimensão. O facto de o quadro
aparecer com figuras cortadas na parte inferior e as figuras do caldeirão
olharem para cima, como se houvesse uma outra cena na parte superior, leva-nos
a crer que poderemos estar na presença de um retábulo, ou seja, na falta do Paraíso num dos lados e um Juízo Final no topo.
Mestre da Lourinhã (?), O
Inferno, c. 1514-1515?
pintura a óleo, 119 X 217,5, Museu nacional de Arte Antiga, 432 PINT
Neste painel, aparecem figuras a ser torturadas que
facilmente conseguimos relacionar com os seus pecados – os Sete Pecados
Mortais. Assim, podemos identificar o pecado do Orgulho nas mulheres com os
cabelos em chamas (José Carlos Cruz compara as três mulheres com as três graças
na mitologia clássica[13]),
da Avareza no homem obrigado a engolir uma moeda, da Gula no judeu obrigado a
beber o vinho, da Inveja no caldeirão, da Ira no homem de cabeça rapada e da Luxúria
no casal de homossexuais. A Preguiça é o único que não se consegue identificar
claramente na pintura, embora alguns historiadores avencem com a ideia de este
pecado deve estar presente no caldeirão dos réprobos. Estes são os pecados capitais,
opostos aos venais, que não têm qualquer absolvição. Estamos perante «… uma
manifestação teológica de grande eficácia demonstrativa no âmbito de uma
crítica social que poupava frades e prelados, em consonância com a dramaturgia
vicentina.»[14]
José Carlos Cruz chama-nos atenção para a conotação entre
o binómio diabo-pecador, dando como exemplo do diabo calvo queimando o cabelo
das mulheres no pecado do Orgulho, do diabo de boca rasgada obrigando o pecador
a engolir uma moeda no pecado da Avareza e do diabo elegante torturando a
mulher que cometera o pecado da Luxúria. Assim sendo, os diabos personificam o
pecado que castigam, o que não deixa de ser uma teoria a ter em conta, pois se
analisarmos em pormenor esta, deparamo-nos com a sua veracidade.
Arranjamos ainda aqui destaque para a representação
do fogo presente nos dois caldeirões e no fogareiro de barro (objecto do
quotidiano português), que é mantido acesso com um fole. Para além do fogo e
dos caldeirões já por si muito ligados ao demoníaco, também encontramos
instrumentos de tortura usados pela justiça religiosa, como os cepos, as
coleiras e os grilhões.
O
elemento fogo presente na obra indica-nos a necessidade de purificação através
do fogo já esclarecido na Primeira Epístola de Apóstolo Paulo aos Coríntios:
«Se a obra de
alguém se queimar, sofrerá detrimento; mas o tal será salvo, todavia como pelo
fogo.»[15]
(I aos Coríntios 3:15)
Há
duas figuras que sobressaem nesta panóplia de seres demoníacos: Lúcifer, que
preside às condenações em segundo plano, e o diabo, que transporta o frade
acorrentado ao seu amante. As suas penas coloridas destacam-se neste cenário
horrífico e rapidamente estamos perante a ideia do índio.
Todavia, este não é o
índio sacralizado de Vasco Fernandes, mas o índio selvagem, sem Deus nem
civilização.
A
teoria que aproxima estas figuras intimidantes ao índio não é consistente entre
os historiadores do tema, nomeadamente para Batoréo, que tem uma visão mais
humanista do índio e dá outra explicação para a inspiração dos demónios nesta
obra, que mais à frente abordaremos em pormenor.
Esta
diabolização do índio deve-se muito provavelmente às notícias que chegaram à
Europa no primeiro decénio de Quinhentos, que contrariam com grande
preponderância a descrição da carta Pêro Vaz de Caminha. Este novo índio já não
é o ser celestial, mas o ser bestial, capaz de praticar a poligamia e o
canibalismo. Para além disso, o índio não conhece Deus, o que causa apreensão ao
Homem cristão. Todavia, Portugal, como país colonizador, tem o dever de
converter estes homens, dando-lhes um caminho religioso a seguir.
«Parece-me gente
de tal inocência que se os homens entendessem e eles a nós, que seriam logo
cristãos, porque eles não têm, nem entendem em nenhuma crença, segundo parece (…)»[16]
Américo
Vespúcio foi o grande responsável pela alteração do índio bom selvagem para o
índio mau selvagem. Vespúcio foi pouco tempo depois de Caminha ao Brasil e trouxe consigo
uma versão completamente diferente, causando uma grande dualidade nos pontos de
vista de cada um. As características antropomórficas descritas de forma
negativa por Vespúcio, como a nudez, o caos sexual, a falta de uma organização
política e social e a ausência de crenças religiosas repugnavam o europeu.[17]
Todavia,
Manuel Batóreo defende que não há associação entre Lúcifer e os índios
brasileiros, dando uma nova solução para esta semelhança: as gravuras de Ars Moriendi – Temptatio Dyaboll de vana
gloria. De facto, encontramos modelos de demónios que se podiam adaptar ao
Lúcifer do painel O Inferno, porém
Batóreo não pode negar que a carta de Pêro Vaz de Caminha era do conhecimento
do pintor nem o exotismo presente no traje de penas do Diabo e do outro
demónio.
[1] Pedro Dias refere-se à carta de
Pêro Vaz de Caminha como a «certidão de nascimento da moderna nação
brasileira».
[2] Os Reis Magos aqui
representados, tendo em conta a principal fonte d’ Adoração dos Magos, o Evangelho Arménio da Infância, estão
relacionados com as três partes do mundo: Melchior é o rei dos persas, Gaspar é
o rei dos árabes e, por fim, Baltasar é o rei dos índios. O facto de se
atribuir a Baltasar a denominação de rei dos índios mostra a força de vontade
dos europeus em integrar este Novo Mundo na corrente cristianizadora e
civilizacional da época.
[3] Cf. PINTO, João da Rocha, «O
olhar europeu: a invenção do índio brasileiro», In: História e Antologia da Literatura Portuguesa Século XVI, Fundação
Calouste Gulbenkian, nº 23 (2002), p. 16
[4] CAMINHA, Pêro Vaz de, Carta a el-rei D. Manuel, Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1974, p. 81
[5] A troca de presentes entre os
portugueses e os nativos era algo comum, por isso não existe novidade quando surpreendemos
o índio com trajes oferecidos pelos portugueses.
[6] CAMINHA, Pêro
Vaz de, Carta a el-rei D. Manuel,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1974, p. 42
[7] A cor parda típica dos índios
fica entre o branco e o negro e era reforçada pelas tintas avermelhadas que
usavam com frequência. A representação de figuras fora da Europa com tons mais
escuros é comum desde a Antiguidade Clássica, pois estariam relacionados com os
climas quentes perto da linha do Equador.
[8] A Bíblia Sagrada, Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, São
Paulo, 1995, p. 1030
[9] «Vestem ricamente, como a alta
nobreza do tempo, tendo Vasco Fernandes conseguido uma solução de compromisso
relativamente ao índio que, usando calção, corpete e camisa tradicionais foi
ornado com uma plumagem pretensiosamente exótica na cabeça, no debrum do decote
e na franja do corpete ou camisola» in
DIAS, Pedro, História da arte portuguesa
no mundo (1415-1822): O Espaço do Atlântico, Círculo de Leitores, [s.l.],
1999, p. 315
[10] Esta é uma proposta iconográfica
do historiador de arte Prof. Dr. Vítor Serrão.
[11] Maria Madalena destaca-se na
composição pelo uso de cores coloridas, como o amarelo e o vermelho, devido ao
seu passado como prostituta.
[12] A Bíblia Sagrada, Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, São
Paulo, 1995, p. 1139
[13] Na mitologia clássica, as três
graças eram deusas do encantamento e da beleza. Por vezes, eram associadas a
Afrodite, a deusa do amor, devido ao seu estatuto de deusas da beleza. Também
se encontram conectadas com as dançarinas do Olimpo. A arte costuma representá-las
a dançar, como acontece na obra A
Primavera, de Sandro Botticelli e n’ As
Três Graças, de Peter Paul Rubens.
[16] CAMINHA, Pêro
Vaz de, A carta de Pêro Vaz de Caminha /
estudos de Manuela Mendonça e Margarida Garcez Ventura, Mar de Letras,
Ericeira, 2000, pp. 175-176
[17] «Comer carne humana e a
poligamia generalizada foram duas realidades que logo fizera cair os índios do
seu pedestal, perdendo-se a esperança no tal e já citado paraíso terreal.» in DIAS, Pedro, História da arte portuguesa no mundo (1415-1822): O Espaço do Atlântico,
Círculo de Leitores, [s.l.], 1999, p. 317
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