quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A iconografia do índio na pintura renascentista portuguesa

A descoberta do Brasil em 1500 por Pedro Álvares Cabral e o conhecimento de uma nova gente pela carta de Pêro Vaz de Caminha encaminhada a D. Manuel I[1] levou os artistas renascentistas a introduziram na sua pintura pequenos apontamentos deste Novo Mundo, nomeadamente, os índios. A história da representação do índio insere-se nos reinados de D. Manuel I e do seu filho, D. João III, e pretendem mostrar não só o sentido antropológico deste, mas apresentar um novo olhar humanista do Homem.

Todavia, a representação do índio variou de pintor para pintor e à medida que se iam conhecendo melhor estes indígenas. Enquanto o primeiro contacto com Vera Cruz e as suas gentes foi transmitido aos europeus como o paraíso térreo e a encarnação de Adão e Eva na terra, mais tarde, esta primeira impressão foi-se alterando, diabolizando a imagem do índio brasileiro. As obras escolhidas para abordar a iconografia do índio mostram exactamente esta distinção: o painel a Adoração dos Magos, atribuído a Vasco Fernandes, actualmente no Museu Grão Vasco, e O Inferno, atribuído ao Mestre da Lourinhã, no Museu Nacional de Arte Antiga.

Vasco Fernandes, mais conhecido por Grão Vasco, foi um pintor português do século XVI. Recebeu a sua primeira obra em 1506, que consistiu na execução de quinze tábuas do retábulo da Sé de Viseu. Entre esta dezena e meia de tábuas estava, provavelmente, a obra Adoração dos Magos, tendo tido como ideólogo D. Diego Ortiz de Villegas (sucedeu ao bispo D. Fernando Gonçalves de Miranda), o bispo que deu o sermão à armada de Cabral antes da partida.

No quadro Adoração dos Magos, o rei negro Baltasar[2] foi substituído por um índio tupinambá, algo inédito na pintura contemporânea da época, sendo mesmo a primeira representação do índio brasileiro. Esta inspiração deveu-se, muito provavelmente, à descrição minuciosa dos índios brasileiros de Pêro Vaz de Caminha, pois, nesta representação o índio ainda era o bom selvagem, tal como o escrivão português o descreveu. A nudez desenvergonhada do índio, como Adão e Eva antes do pecado original, contribuiu bastante para a construção da sua imagem sacralizada junto da civilização[3]. O homem primitivo e inocente, que ainda não foi corrompido pelos pecados do mundo ocidental. É o retorno à Igreja Primitiva, também esta pura aquando a sua construção, e também agora corrompida pelos males.

Para além dos habitantes celestiais que Caminha ofereceu na sua descrição, também brindou o mundo com um paraíso utópico, onde a natureza é exótica e o clima afável.
«Assim, Senhor, que a inocência desta gente é tal, que a d’Adão não seria mais quant’a em vergonha. Ora veja Vossa Alteza que em tal inocência vive, ensinando-lhes o que para a sua salvação pertence, se converterão ou não»[4].

Se acompanharmos de perto a imagem deste índio na obra de Vasco Fernandes conseguimos percepcionar uma reprodução da descrição de Caminha: a «copazinha pequena de penas vermelhas e pardas como as dos papagaios», as penas do índio e a lança de longo cabo - características dos Tupinambá. Todavia, os trajes (a camisa e os calções) têm influência europeia, possivelmente foram oferecidos pelos portugueses[5] e os cabelos são crespos, como os negros, e não «corredios» ou rapados como Caminha refere.
«E daqui mandou o capitão Nicolau Coelho e Bertolameu Diis que fossem em terra e levassem aqueles dous homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e cada um dos quais mandou dar uma camisa nova e uma carapuça vermelha e um rosairo de contas brancas d’osso, que eles levavam nos braços, e um cascavel e uma companhia»[6].


Vasco Fernandes (c. 1475-1542), Adoração dos Magos, c. 1510 (?)
pintura a óleo, 131 x 81, Museu Grão Vasco, 2145

Para além destes elementos, o índio surge ainda de sandálias, com vários colares e pulseiras de ouro, uma corrente de pérolas apertada no pescoço e múltiplas penas coloridas numa faixa na cintura e na borda da camisa. A fortalecer a vertente exótica desta obra encontramos o índio brasileiro a segurar «uma taça feita de noz de coco montada em prata». 

Grão Vasco voltou a figurar o índio brasileiro no Calvário, mas nesta obra surge como o Bom Ladrão, ou seja, o pintor prolongou no seu espólio a ideia do bom selvagem. Aqui, o índio é um homem bom, assim como era o Bom Ladrão no Evangelho. E tal como aconteceu com Adoração dos Magos, também o Calvário seguiu as descrições anatómicas de Pêro Vaz de Caminha[10], sendo este“pardo” e de “cabelos negros e escorridos”.

Vasco Fernandes, Calvário, c. 1515
pintura a óleo, 242,3 X 239,3, Museu Grão Vasco, 2156


Novamente, o índio é a grande novidade na obra de Vasco Fernandes, pois todas as outras personagens são típicas da temática religiosa: Jesus na cruz, o Bom e o Mau Ladrão, a Virgem Maria, Maria Madalena[11], Maria, mãe de Tiago, e Maria Salomé, os soldados com lanças, o grupo de homens que trazem as escadas para descer os corpos e a cidade de Jerusalém.
«Lucas 23:39 E um dos malfeitores que estavam pendurados blasfemava dele: dizendo: Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e a nós.
Lucas 23:40 Respondendo, porém, o outro, repreendia-o, dizendo: Tu nem ainda temes a Deus, estando na mesa condenação?
Lucas 23:41 E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos mereciam; mas este nenhum mal fez.
Lucas 23:42 E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino.
Lucas 23:43 E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso.»[12] (Lc 23:39ss)

Outra representação bem conhecida na pintura portuguesa que retrata o índio brasileiro é O Inferno, de mestre não identificado, segundo defende Dalila Rodrigues, ou do Mestre da Lourinhã, para o Prof. Dr. Vítor Serrão, que chega mesmo a comparar a cabeça do índio-demónio com o mago de Hermógenes, no retábulo de Santiago.           

Este quadro datável de cerca de 1515 encontra-se actualmente no Museu Nacional de Arte antiga, em Lisboa, mas pensa-se que deve ter pertencido a um dos muitos conventos extintos em 1834, pois a Academia de Belas-Artes ficou com grande parte do seu espólio e em 1884 foi transferido para o Museu Nacional de Arte Antiga. Para Fernando Pamplona, este quadro jamais poderia figurar num convento devido ao seu tema demoníaco, dando ao leitor uma nova direcção: o Tribunal da Relação em Lisboa.      

Esta obra traz outras especulações como a sua real dimensão. O facto de o quadro aparecer com figuras cortadas na parte inferior e as figuras do caldeirão olharem para cima, como se houvesse uma outra cena na parte superior, leva-nos a crer que poderemos estar na presença de um retábulo, ou seja, na falta do Paraíso num dos lados e um Juízo Final no topo.

Mestre da Lourinhã (?), O Inferno, c. 1514-1515?
pintura a óleo, 119 X 217,5, Museu nacional de Arte Antiga, 432 PINT

Neste painel, aparecem figuras a ser torturadas que facilmente conseguimos relacionar com os seus pecados – os Sete Pecados Mortais. Assim, podemos identificar o pecado do Orgulho nas mulheres com os cabelos em chamas (José Carlos Cruz compara as três mulheres com as três graças na mitologia clássica[13]), da Avareza no homem obrigado a engolir uma moeda, da Gula no judeu obrigado a beber o vinho, da Inveja no caldeirão, da Ira no homem de cabeça rapada e da Luxúria no casal de homossexuais. A Preguiça é o único que não se consegue identificar claramente na pintura, embora alguns historiadores avencem com a ideia de este pecado deve estar presente no caldeirão dos réprobos. Estes são os pecados capitais, opostos aos venais, que não têm qualquer absolvição. Estamos perante «… uma manifestação teológica de grande eficácia demonstrativa no âmbito de uma crítica social que poupava frades e prelados, em consonância com a dramaturgia vicentina.»[14]





José Carlos Cruz chama-nos atenção para a conotação entre o binómio diabo-pecador, dando como exemplo do diabo calvo queimando o cabelo das mulheres no pecado do Orgulho, do diabo de boca rasgada obrigando o pecador a engolir uma moeda no pecado da Avareza e do diabo elegante torturando a mulher que cometera o pecado da Luxúria. Assim sendo, os diabos personificam o pecado que castigam, o que não deixa de ser uma teoria a ter em conta, pois se analisarmos em pormenor esta, deparamo-nos com a sua veracidade.

Arranjamos ainda aqui destaque para a representação do fogo presente nos dois caldeirões e no fogareiro de barro (objecto do quotidiano português), que é mantido acesso com um fole. Para além do fogo e dos caldeirões já por si muito ligados ao demoníaco, também encontramos instrumentos de tortura usados pela justiça religiosa, como os cepos, as coleiras e os grilhões.


O elemento fogo presente na obra indica-nos a necessidade de purificação através do fogo já esclarecido na Primeira Epístola de Apóstolo Paulo aos Coríntios:
«Se a obra de alguém se queimar, sofrerá detrimento; mas o tal será salvo, todavia como pelo fogo.»[15] (I aos Coríntios 3:15)

Há duas figuras que sobressaem nesta panóplia de seres demoníacos: Lúcifer, que preside às condenações em segundo plano, e o diabo, que transporta o frade acorrentado ao seu amante. As suas penas coloridas destacam-se neste cenário horrífico e rapidamente estamos perante a ideia do índio. 
Todavia, este não é o índio sacralizado de Vasco Fernandes, mas o índio selvagem, sem Deus nem civilização.



A teoria que aproxima estas figuras intimidantes ao índio não é consistente entre os historiadores do tema, nomeadamente para Batoréo, que tem uma visão mais humanista do índio e dá outra explicação para a inspiração dos demónios nesta obra, que mais à frente abordaremos em pormenor.

Esta diabolização do índio deve-se muito provavelmente às notícias que chegaram à Europa no primeiro decénio de Quinhentos, que contrariam com grande preponderância a descrição da carta Pêro Vaz de Caminha. Este novo índio já não é o ser celestial, mas o ser bestial, capaz de praticar a poligamia e o canibalismo. Para além disso, o índio não conhece Deus, o que causa apreensão ao Homem cristão. Todavia, Portugal, como país colonizador, tem o dever de converter estes homens, dando-lhes um caminho religioso a seguir.
«Parece-me gente de tal inocência que se os homens entendessem e eles a nós, que seriam logo cristãos, porque eles não têm, nem entendem em nenhuma crença, segundo parece (…)»[16]

Américo Vespúcio foi o grande responsável pela alteração do índio bom selvagem para o índio mau selvagem. Vespúcio foi pouco tempo depois de Caminha ao Brasil e trouxe consigo uma versão completamente diferente, causando uma grande dualidade nos pontos de vista de cada um. As características antropomórficas descritas de forma negativa por Vespúcio, como a nudez, o caos sexual, a falta de uma organização política e social e a ausência de crenças religiosas repugnavam o europeu.[17]

Todavia, Manuel Batóreo defende que não há associação entre Lúcifer e os índios brasileiros, dando uma nova solução para esta semelhança: as gravuras de Ars Moriendi – Temptatio Dyaboll de vana gloria. De facto, encontramos modelos de demónios que se podiam adaptar ao Lúcifer do painel O Inferno, porém Batóreo não pode negar que a carta de Pêro Vaz de Caminha era do conhecimento do pintor nem o exotismo presente no traje de penas do Diabo e do outro demónio.



[1] Pedro Dias refere-se à carta de Pêro Vaz de Caminha como a «certidão de nascimento da moderna nação brasileira».
[2] Os Reis Magos aqui representados, tendo em conta a principal fonte d’ Adoração dos Magos, o Evangelho Arménio da Infância, estão relacionados com as três partes do mundo: Melchior é o rei dos persas, Gaspar é o rei dos árabes e, por fim, Baltasar é o rei dos índios. O facto de se atribuir a Baltasar a denominação de rei dos índios mostra a força de vontade dos europeus em integrar este Novo Mundo na corrente cristianizadora e civilizacional da época.
[3] Cf. PINTO, João da Rocha, «O olhar europeu: a invenção do índio brasileiro», In: História e Antologia da Literatura Portuguesa Século XVI, Fundação Calouste Gulbenkian, nº 23 (2002), p. 16
[4] CAMINHA, Pêro Vaz de, Carta a el-rei D. Manuel, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1974, p. 81
[5] A troca de presentes entre os portugueses e os nativos era algo comum, por isso não existe novidade quando surpreendemos o índio com trajes oferecidos pelos portugueses.
[6] CAMINHA, Pêro Vaz de, Carta a el-rei D. Manuel, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1974, p. 42
[7] A cor parda típica dos índios fica entre o branco e o negro e era reforçada pelas tintas avermelhadas que usavam com frequência. A representação de figuras fora da Europa com tons mais escuros é comum desde a Antiguidade Clássica, pois estariam relacionados com os climas quentes perto da linha do Equador.
[8] A Bíblia Sagrada, Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, São Paulo, 1995, p. 1030
[9] «Vestem ricamente, como a alta nobreza do tempo, tendo Vasco Fernandes conseguido uma solução de compromisso relativamente ao índio que, usando calção, corpete e camisa tradicionais foi ornado com uma plumagem pretensiosamente exótica na cabeça, no debrum do decote e na franja do corpete ou camisola» in DIAS, Pedro, História da arte portuguesa no mundo (1415-1822): O Espaço do Atlântico, Círculo de Leitores, [s.l.], 1999, p. 315
[10] Esta é uma proposta iconográfica do historiador de arte Prof. Dr. Vítor Serrão.
[11] Maria Madalena destaca-se na composição pelo uso de cores coloridas, como o amarelo e o vermelho, devido ao seu passado como prostituta.
[12] A Bíblia Sagrada, Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, São Paulo, 1995, p. 1139
[13] Na mitologia clássica, as três graças eram deusas do encantamento e da beleza. Por vezes, eram associadas a Afrodite, a deusa do amor, devido ao seu estatuto de deusas da beleza. Também se encontram conectadas com as dançarinas do Olimpo. A arte costuma representá-las a dançar, como acontece na obra A Primavera, de Sandro Botticelli e n’ As Três Graças, de Peter Paul Rubens.
[14]PEREIRA, Paulo, 2000 Anos de arte em Portugal, Temas e Debates, Lisboa, 1999, p. 225
[15] A Bíblia Sagrada, Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, São Paulo, 1995, p. 1238
[16] CAMINHA, Pêro Vaz de, A carta de Pêro Vaz de Caminha / estudos de Manuela Mendonça e Margarida Garcez Ventura, Mar de Letras, Ericeira, 2000, pp. 175-176
[17] «Comer carne humana e a poligamia generalizada foram duas realidades que logo fizera cair os índios do seu pedestal, perdendo-se a esperança no tal e já citado paraíso terreal.» in DIAS, Pedro, História da arte portuguesa no mundo (1415-1822): O Espaço do Atlântico, Círculo de Leitores, [s.l.], 1999, p. 317

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