A
primeira referência à Capela de S. Miguel remonta a 1080, quando o alvazir
Sesnando, primeiro governador cristão, ao restaurar o que foi destruído pelo
Imperador Fernando Magno, em 1064[1],
inicia um conjunto de edificações, entre elas encontrava-se a futura Capela de
S. Miguel. Quatro séculos mais tarde, com a cedência do Paço ao Infante D.
Pedro, Duque de Coimbra, novas campanhas se iniciam, avultando a destruição da
capela primitiva e o lançamento do que hoje existe.
No
Paço Real de Alcáçova instalou-se o primeiro rei de Portugal, D. Afonso
Henriques, a partir de 1130, nele vivendo igualmente os seus imediatos
sucessores.[2] D.
Afonso V foi o primeiro rei a retirar-se do paço com a sua corte, deixando este
em decadência até ao reinado de D. Manuel I que, em 1507 e segundo projecto de
Boitaca, põe em marcha um imponente programa de reforma, concluído apenas em
1533, já no reinado de D. João III, sob as direcções de Marco Pires e Diogo
Castilho[3].
D.
João II, um monarca que apostou mais na política do que na estética, deixa em
testamento o trono ao duque de Beja, D. Manuel, dando-lhe a esfera armilar como
divisa e o dever de implementar uma estética em Portugal. O facto de o monarca
subir ao trono de forma contornada exigiu deste um programa de legitimação do
seu poder, aproveitando os bons ventos da expansão marítima. «Aproveitando o
momento mágico da chegada à Índia e da viragem do milénio, D. Manuel I (ou os
seus conselheiros) foi capaz de coagular os fragmentos do século anterior
dentro de uma mentalidade já moderna, assim forjando a imagem ímpar que impôs
como rosto oficial do país: o extravagante «estilo manuelino». Este foi o
rastilho perfeito para as cordas, âncoras, velas e conchas dos edifícios
manuelinos se associarem aos Descobrimentos[4].
O
portal manuelino da Capela de São Miguel foi construído entre 1517 e 1522 por
Marco Pires, que faleceu por volta de 1521. Quem prosseguiu com o projecto foi
Diogo de Castilho, mas também este arquitecto não completou a obra a encargo.
Segundo Pedro Dias, Diogo de Castilho, enquanto mestre das obras, foi bastante
apreciado pelo monarca, pois renovou-lhe o vencimento dado no início da
nomeação «Diogo de Castilho começou por receber a quantia de 3000 reais por
ano, mas, logo três anos depois, o monarca aumentava-lhe o vencimento em mais
de 2000 reais.»[5]
Autores
como Flórido de Vasconcelos e Jorge Henrique Pais da Silva vão contra a teoria
que tenha sido Marcos Pires a elaborar o pórtico e apostam no francês Boitaca,
arquitecto que se destacou em Portugal entre 1490 e 1525, já depois de ter falecido o Venturoso, em 1521.
Em Coimbra, «De, facto, Boitaca dirigiu as obras de reconstrução deste mosteiro[6], entre
1508 e 1513, sendo-lhe atribuídas também as obras manuelinas dos Paços Reais da
cidade do Mondego, onde hoje se encontra instalada a Universidade, cuja capela
conserva um pórtico bem no seu estilo.»[7]
Portal manuelino da
Capela de S. Miguel |
O
portal da Capela de São Miguel encontra-se entre duas janelas, dando a sensação
de um verticalismo, que se prolonga por estas. Duas bases altas erguem dois
contrafortes torcidos, contendo coroas sumptuosas na parte superior e
acabamentos piramidais. No interior dos contrafortes está um duplo vão paralelo
e um mainel delicado no centro do portal.
Os
vãos são emoldurados por três colunelos lisos e dois intercolúnios com motivos
vegetalistas estilizados. Os colunelos de dentro prolongam-se até acima em
arcos policêntricos, deixando suspenso dois cogulhos e para cima acentuam-se
outros motivos vegetalistas. Do colunelo exterior surge um arco trilobulado que
se vai encontrando com outros, mas de centros opostos, delineando os três
emblemas manuelinos e envolvendo uma rica ornamentação arbórea. Este arco arbóreo
forma uma cruz no alto do tímpano englobando o escudete das Cinco Chagas de
Cristo.
No
tímpano estão as armas reais: o escudo real ao centro, a cruz da Ordem Militar
de Cristo[8] do
lado esquerdo de quem observa e a esfera armilar no lado direito.[9] Por
cima destes elementos simbólicos encontramos três escudetes com símbolos da
Paixão de Cristo, como a coroa de espinhos no escudete do lado esquerdo, os
cravos no lado direito e em cima as Cinco Chagas de Cristo.
Como
foi dito anteriormente, o pórtico encontra-se rodeado por duas elegantes
janelas vazadas no muro do pórtico, que formam um arco policêntrico, com suspensos
cogulhos nas pontas, fechando em cruz.
Este
pórtico cria controvérsia entre os vários autores que escreveram e se debateram
sobre ele: para Manuel Mendes Atanázio «De manuelino tem este pórtico pouco,
por lhe faltar a virulência e a desordem naturalista de Belém, da Golegã, da Sé
da Guarda, ou de Tomar, sacristia de Alcobaça, etc.»[10],
contudo para António Vasconcelos «A porta é no seu género dos mais apreciáveis
exemplares manuelino, notável entre tantas que o país possue.»[11]
Concluímos que, tanto Manuel Mendes de Atanázio como António Vasconcelos
avaliam a Capela de São Miguel num estudo comparativo com outros edifícios que
sofreram, igualmente, a intervenção do “programa” manuelino.
A
nível do pórtico podemos encontrar contrafortes semelhantes aos da Capela de
São Miguel, por exemplo, na Igreja Matriz da Golegã e na Sé da Catedral da
Guarda, em que estes também são torcidos, ornamentados e rematam em forma
piramidal. A verticalidade do pórtico é, também, acentuada neste último exemplo
pelas janelas.
Em
comparação com outros tímpanos manuelinos podemos constatar que existe apenas
uma regra exacta que os aproxima: o escudo régio centralizado. Todos os outros
elementos que constituem o manuelino têm uma disposição que varia de edifício
para edifício. Ora vejamos estudos de caso: a Igreja da Ega e a Igreja matriz
da Golegã têm o escudo ao centro ladeado por duas esferas armilares e encimado
pela cruz de Cristo, contudo, algo torna o último exemplo invulgar, a
duplicação da cruz de Cristo.
Notamos
ainda outro aspecto: a ausência de corais, algas e cordas, e toda uma panóplia
de motivos marítimos que permanecem em tantas outras obras manuelinas, como na
tão vistosa e apreciada janela do Convento de Cristo. Nesta obra podemos ver
não só os símbolos régios defendidos por D. Manuel, como também todo um
conjunto de elementos iconográficos ligados ao mar, que nos transportam para um
outro tipo de manuelino muito mais confuso, onde se pretende passar várias
emoções ao observador. Contudo, o caso de São Miguel não é único, pois temos
múltiplos exemplos espalhados pelo país, onde não triunfam os motivos
marítimos, como o portal da igreja de Marvila, em Santarém e o portal da Igreja
de Palhães. O que nos leva a concluir que não temos uma solução uniforme para
cada monumento: cada caso é um caso, embora possa ter semelhanças e diferenças.
[1] Em 1064, a actual
Universidade de Coimbra era uma alcáçova edificada por Almançor, em 994, após a
conquista da cidade de Coimbra, que foi destruída, no seu flanco Sul, durante a
reconquista definitiva da cidade por Fernando I de Castela, cognominado o
Magno.
[2] Tanto D. Afonso
Henriques como o seu filho, Sancho I foram sepultados na cidade de Coimbra,
mais precisamente no Mosteiro de Santa Cruz (no piso inferior do mosteiro), ao
contrário do que aconteceu com os seus respectivos pais e avós, que foram
sepultados em Braga. O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra foi fundado em 1131 por
D. Telo e mais onze religiosos. Nesta altura, era o mosteiro mais próximo de um
centro político no país. Em 1163, um ano após a morte de D. Telo, foi
canonizado, passando a ser São Teotónio.
[3] É no Paço Real de
Alcáçova, a mais antiga, e seguramente, uma das mais fascinantes residências
régias europeias, já então velho de mais de cinco séculos, que a Universidade
se aloja em 1537, por cedência de D. João III, que a transferira de Lisboa,
vindo a adquirir o edifício em 1597. Em 1544, todas as Faculdades da
Universidade de Coimbra se reúnem no Páteo das Escola
[4] «Essas cordas, que
inflamaram a fantasia dos historiadores da arte de outros tempos, tanto
aparecem nos barcos como nos carros de bois; as âncoras, que os arquitectos
historicistas d século passado repetiram em tantas fachadas, não se encontram
em nenhum construção realmente manuelina; as velas mais não estão que na mente
de escritores pouco atentos à realidade, e assim poderíamos continuar, dando
exemplos do género.» in DIAS, Pedro, A viagem das formas: estudos sobre as
relações artísticas de Portugal com a Europa, a África, o Oriente e as Américas,
Estampa, Lisboa, 1950 p. 160
[5] DIAS, Pedro, A Arquitectura de Coimbra na Transição do
Gótico para a Renascença 1490-1540, EPARTUR – Edições Portuguesas de Arte e
Turismo, Lda., Coimbra, 1982, p. 91
[6] Refere-se ao
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, um monumento, que em 1502, D. Manuel I
decide remodelar, e os autores foram, precisamente, Marco Pires e Boitaca. «Em
1502 D. Manuel decide remodelar completamente o velho edifício românico e mandar
executar novos túmulos para D. Afonso I e D. Sancho II, obras (igreja, claustro
e anexos, capelas e oficinas, etc.) realizadas sob a orientação do prior-mor D.
Pedro Gavião (falecido em 1516).» in SILVA, Jorge Henrique Pais da, Páginas de História da Arte, vol. I,
Editorial Estampa, Estudos e Ensaios, nº 53, Lisboa, 1986, p. 79
[7] VASCONCELOS, Flórido
de, História da Arte em Portugal,
Editorial Verbo, 1972, p. 52
[8] D. Manuel I foi
Governador da Ordem militar de Cristo, desde 1483, com sede no Convento de
Cristo, monumento também alvo de grandes programas de intervenção.
[9] «Com a esfera
armilar, a cruz de Cristo e o escudo real, surgem num sem número de portais do
período manuelino, marcados assim pela iniciativa régia que os mandou erigir.» in PEREIRA, Paulo, A Obra Silvestre e a Esfera do Rei – Iconologia da Arquitectura
Manuelina na Grande Estremadura, Instituto de História da Arte, Coimbra,
1990, p. 97
[10] ATANÁZIO, Manuel
Mendes, O estilo e a iconografia do
portal da Capela de S. Miguel, in
Universidade (s): história, memória, perspectiva, Comissão Organizadora do Congresso
“História da Universidade”, Coimbra, 1991, p. 291
[11] VASCONCELOS,
António, Real Capella da
Universidade: alguns apontamentos e notas para a sua história, Imprensa da
Universidade, Coimbra, 1908, p. 93
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