sábado, 20 de setembro de 2014

O pórtico manuelino da Capela de São Miguel

A primeira referência à Capela de S. Miguel remonta a 1080, quando o alvazir Sesnando, primeiro governador cristão, ao restaurar o que foi destruído pelo Imperador Fernando Magno, em 1064[1], inicia um conjunto de edificações, entre elas encontrava-se a futura Capela de S. Miguel. Quatro séculos mais tarde, com a cedência do Paço ao Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, novas campanhas se iniciam, avultando a destruição da capela primitiva e o lançamento do que hoje existe.  
No Paço Real de Alcáçova instalou-se o primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, a partir de 1130, nele vivendo igualmente os seus imediatos sucessores.[2] D. Afonso V foi o primeiro rei a retirar-se do paço com a sua corte, deixando este em decadência até ao reinado de D. Manuel I que, em 1507 e segundo projecto de Boitaca, põe em marcha um imponente programa de reforma, concluído apenas em 1533, já no reinado de D. João III, sob as direcções de Marco Pires e Diogo Castilho[3]
D. João II, um monarca que apostou mais na política do que na estética, deixa em testamento o trono ao duque de Beja, D. Manuel, dando-lhe a esfera armilar como divisa e o dever de implementar uma estética em Portugal. O facto de o monarca subir ao trono de forma contornada exigiu deste um programa de legitimação do seu poder, aproveitando os bons ventos da expansão marítima. «Aproveitando o momento mágico da chegada à Índia e da viragem do milénio, D. Manuel I (ou os seus conselheiros) foi capaz de coagular os fragmentos do século anterior dentro de uma mentalidade já moderna, assim forjando a imagem ímpar que impôs como rosto oficial do país: o extravagante «estilo manuelino». Este foi o rastilho perfeito para as cordas, âncoras, velas e conchas dos edifícios manuelinos se associarem aos Descobrimentos[4].
O portal manuelino da Capela de São Miguel foi construído entre 1517 e 1522 por Marco Pires, que faleceu por volta de 1521. Quem prosseguiu com o projecto foi Diogo de Castilho, mas também este arquitecto não completou a obra a encargo. Segundo Pedro Dias, Diogo de Castilho, enquanto mestre das obras, foi bastante apreciado pelo monarca, pois renovou-lhe o vencimento dado no início da nomeação «Diogo de Castilho começou por receber a quantia de 3000 reais por ano, mas, logo três anos depois, o monarca aumentava-lhe o vencimento em mais de 2000 reais.»[5]
Autores como Flórido de Vasconcelos e Jorge Henrique Pais da Silva vão contra a teoria que tenha sido Marcos Pires a elaborar o pórtico e apostam no francês Boitaca, arquitecto que se destacou em Portugal entre 1490 e 1525, já depois de ter falecido o Venturoso, em 1521. Em Coimbra, «De, facto, Boitaca dirigiu as obras de reconstrução deste mosteiro[6], entre 1508 e 1513, sendo-lhe atribuídas também as obras manuelinas dos Paços Reais da cidade do Mondego, onde hoje se encontra instalada a Universidade, cuja capela conserva um pórtico bem no seu estilo.»[7]

Portal manuelino da Capela de S. Miguel
O portal da Capela de São Miguel encontra-se entre duas janelas, dando a sensação de um verticalismo, que se prolonga por estas. Duas bases altas erguem dois contrafortes torcidos, contendo coroas sumptuosas na parte superior e acabamentos piramidais. No interior dos contrafortes está um duplo vão paralelo e um mainel delicado no centro do portal.
Os vãos são emoldurados por três colunelos lisos e dois intercolúnios com motivos vegetalistas estilizados. Os colunelos de dentro prolongam-se até acima em arcos policêntricos, deixando suspenso dois cogulhos e para cima acentuam-se outros motivos vegetalistas. Do colunelo exterior surge um arco trilobulado que se vai encontrando com outros, mas de centros opostos, delineando os três emblemas manuelinos e envolvendo uma rica ornamentação arbórea. Este arco arbóreo forma uma cruz no alto do tímpano englobando o escudete das Cinco Chagas de Cristo.
No tímpano estão as armas reais: o escudo real ao centro, a cruz da Ordem Militar de Cristo[8] do lado esquerdo de quem observa e a esfera armilar no lado direito.[9] Por cima destes elementos simbólicos encontramos três escudetes com símbolos da Paixão de Cristo, como a coroa de espinhos no escudete do lado esquerdo, os cravos no lado direito e em cima as Cinco Chagas de Cristo.
Como foi dito anteriormente, o pórtico encontra-se rodeado por duas elegantes janelas vazadas no muro do pórtico, que formam um arco policêntrico, com suspensos cogulhos nas pontas, fechando em cruz.
Este pórtico cria controvérsia entre os vários autores que escreveram e se debateram sobre ele: para Manuel Mendes Atanázio «De manuelino tem este pórtico pouco, por lhe faltar a virulência e a desordem naturalista de Belém, da Golegã, da Sé da Guarda, ou de Tomar, sacristia de Alcobaça, etc.»[10], contudo para António Vasconcelos «A porta é no seu género dos mais apreciáveis exemplares manuelino, notável entre tantas que o país possue.»[11] Concluímos que, tanto Manuel Mendes de Atanázio como António Vasconcelos avaliam a Capela de São Miguel num estudo comparativo com outros edifícios que sofreram, igualmente, a intervenção do “programa” manuelino.
A nível do pórtico podemos encontrar contrafortes semelhantes aos da Capela de São Miguel, por exemplo, na Igreja Matriz da Golegã e na Sé da Catedral da Guarda, em que estes também são torcidos, ornamentados e rematam em forma piramidal. A verticalidade do pórtico é, também, acentuada neste último exemplo pelas janelas.
Em comparação com outros tímpanos manuelinos podemos constatar que existe apenas uma regra exacta que os aproxima: o escudo régio centralizado. Todos os outros elementos que constituem o manuelino têm uma disposição que varia de edifício para edifício. Ora vejamos estudos de caso: a Igreja da Ega e a Igreja matriz da Golegã têm o escudo ao centro ladeado por duas esferas armilares e encimado pela cruz de Cristo, contudo, algo torna o último exemplo invulgar, a duplicação da cruz de Cristo.
Notamos ainda outro aspecto: a ausência de corais, algas e cordas, e toda uma panóplia de motivos marítimos que permanecem em tantas outras obras manuelinas, como na tão vistosa e apreciada janela do Convento de Cristo. Nesta obra podemos ver não só os símbolos régios defendidos por D. Manuel, como também todo um conjunto de elementos iconográficos ligados ao mar, que nos transportam para um outro tipo de manuelino muito mais confuso, onde se pretende passar várias emoções ao observador. Contudo, o caso de São Miguel não é único, pois temos múltiplos exemplos espalhados pelo país, onde não triunfam os motivos marítimos, como o portal da igreja de Marvila, em Santarém e o portal da Igreja de Palhães. O que nos leva a concluir que não temos uma solução uniforme para cada monumento: cada caso é um caso, embora possa ter semelhanças e diferenças.



[1] Em 1064, a actual Universidade de Coimbra era uma alcáçova edificada por Almançor, em 994, após a conquista da cidade de Coimbra, que foi destruída, no seu flanco Sul, durante a reconquista definitiva da cidade por Fernando I de Castela, cognominado o Magno.
[2] Tanto D. Afonso Henriques como o seu filho, Sancho I foram sepultados na cidade de Coimbra, mais precisamente no Mosteiro de Santa Cruz (no piso inferior do mosteiro), ao contrário do que aconteceu com os seus respectivos pais e avós, que foram sepultados em Braga. O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra foi fundado em 1131 por D. Telo e mais onze religiosos. Nesta altura, era o mosteiro mais próximo de um centro político no país. Em 1163, um ano após a morte de D. Telo, foi canonizado, passando a ser São Teotónio.
[3] É no Paço Real de Alcáçova, a mais antiga, e seguramente, uma das mais fascinantes residências régias europeias, já então velho de mais de cinco séculos, que a Universidade se aloja em 1537, por cedência de D. João III, que a transferira de Lisboa, vindo a adquirir o edifício em 1597. Em 1544, todas as Faculdades da Universidade de Coimbra se reúnem no Páteo das Escola
[4] «Essas cordas, que inflamaram a fantasia dos historiadores da arte de outros tempos, tanto aparecem nos barcos como nos carros de bois; as âncoras, que os arquitectos historicistas d século passado repetiram em tantas fachadas, não se encontram em nenhum construção realmente manuelina; as velas mais não estão que na mente de escritores pouco atentos à realidade, e assim poderíamos continuar, dando exemplos do género.» in DIAS, Pedro, A viagem das formas: estudos sobre as relações artísticas de Portugal com a Europa, a África, o Oriente e as Américas, Estampa, Lisboa, 1950 p. 160
[5] DIAS, Pedro, A Arquitectura de Coimbra na Transição do Gótico para a Renascença 1490-1540, EPARTUR – Edições Portuguesas de Arte e Turismo, Lda., Coimbra, 1982, p. 91
[6] Refere-se ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, um monumento, que em 1502, D. Manuel I decide remodelar, e os autores foram, precisamente, Marco Pires e Boitaca. «Em 1502 D. Manuel decide remodelar completamente o velho edifício românico e mandar executar novos túmulos para D. Afonso I e D. Sancho II, obras (igreja, claustro e anexos, capelas e oficinas, etc.) realizadas sob a orientação do prior-mor D. Pedro Gavião (falecido em 1516).» in  SILVA, Jorge Henrique Pais da, Páginas de História da Arte, vol. I, Editorial Estampa, Estudos e Ensaios, nº 53, Lisboa, 1986, p. 79
[7] VASCONCELOS, Flórido de, História da Arte em Portugal, Editorial Verbo, 1972, p. 52
[8] D. Manuel I foi Governador da Ordem militar de Cristo, desde 1483, com sede no Convento de Cristo, monumento também alvo de grandes programas de intervenção.
[9] «Com a esfera armilar, a cruz de Cristo e o escudo real, surgem num sem número de portais do período manuelino, marcados assim pela iniciativa régia que os mandou erigir.» in PEREIRA, Paulo, A Obra Silvestre e a Esfera do Rei – Iconologia da Arquitectura Manuelina na Grande Estremadura, Instituto de História da Arte, Coimbra, 1990, p. 97
[10] ATANÁZIO, Manuel Mendes, O estilo e a iconografia do portal da Capela de S. Miguel, in Universidade (s): história, memória, perspectiva, Comissão Organizadora do Congresso “História da Universidade”, Coimbra, 1991, p. 291
[11] VASCONCELOS, António, Real Capella da Universidade: alguns apontamentos e notas para a sua história, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1908, p. 93

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